22 de abr. de 2011

Ela por Natércia Freire

O poema abaixo foi escrito pela poeta portuguesa Natércia Freire (1920-2004), amiga de Clarice Lispector. E sim, ela escreveu com "ss". Para saber mais sobre ela, clique aqui
CLARISSE
Amiga e, num instante, minha Irmã,
com olhos de água e comunhões de oceanos.
Sonho-te os sonhos que sonhaste há anos.
Amiga e, num instante, minha Irmã.
Húmida voz, a tua voz de longe.
— Ó rios brandos, que canção de embalo!
Serena voz, a tua voz de longe…
A tua voz é a voz com que eu não falo.
Límpidas mãos, as tuas mãos de afago.
Doente e morta, eu ressucito a medo.
Irmã Clarisse: lembras-te do lago
da Água Azul pintada de arvoredo?
Irmã Clarisse: lembras-te da aurora,
dos mundos infantis? Da infância alada?
Dos caracóis desfeitos da pastora?
Das chuvas na vidraça? Da nortada?
Vestiste o bibe dum tecido igual
e esperaste na saleta silenciosa
os cheiros, os contactos, o Natal,
como eu, na saleta silenciosa!
E adormeceste sem destino ou esperança.
E viajaste sem clarão nem fé!
Que triste, irmã Clarisse, ser criança
enrolada, rolada na maré.
Graça e Tânia são irmãs de Bruma,**
Irmãs em continentes afastados.
Em que parte do mundo a Mãe da Espuma
nos deu ao mundo, isenta de pecados?
Pisada, recalcada e dada aos poços,
morri muitos mil anos antes disto.
Ao sol dúbio da estrada de alvoroços,
Estendi as mãos; com as tuas achei Cristo.

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